quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

YES. IT´S ALL OVER NOW ! Dolores, você conseguiu.



Esse texto é para todos os meus amigos fãs leais.
César Serrazes

Sim, está tudo começando a acabar agora. Minha primeira reação à faixa "All Over Now" dos Cranberries foi negativa - eu queria negar que a música era boa (apesar de simples) e pensava: repetitiva... não dá para pegar se é pesada ou suave... e então ouvi algumas 10 ou quinze vezes e fui trabalhar.
Hoje parei parar ouvir, finalmente, e não por obrigação. Eu tinha gostado, na verdade, mas queria negar. E quando parei para ouvir, (com bons fones) fui realmente ouvindo: o baixo. O solo de guitarra que me lembrou Animal Instinct. A bateria - que durante o REFRÃO fica MUITO pesada, com uma força (mostrada na gravação claramente) parecendo dizer: eu, baterista, estou puto da vida enquanto ela canta All Over Now. Mas estou cheio de energia. Porque é isto o que o Cranberries trouxe para esse álbum: energia.
Aí ouvi, então, com cuidado a voz. "Dou you remember... / Remember that night / La la la / La la la". Parece uma valsa - dois passos para lá, dois passos para cá, bem simples. Para variar, as famosas "valsinhas" do Cranberries foram as melhores coisas que eles criaram: Put Me Down, Pretty, Joe, Waiting in Walthamstown, Carry On (e etc). A voz em All Over Now é doce, mas tem algo bem marcante - passa uma certa convicção da própria Dolores de que ela sabe que está entregando a melhor faixa do mundo, mesmo sendo tão simples. Como se nos fizesse pensar: mas o que é uma cantora tão especial e inteligente viu nessa melodia tão simplinha?
Finalmente, ouvindo todo o conjunto mais uma poucas 30 vezes, bateu a ficha...
criar a magia da simplicidade sempre foi, desde o Everybody Else, a marca e a perfeição do Cranberries. A banda nasceu da destreza da simplicidade. 1. Só três ou quatro acordes, ou seis, MAS MUITO bem elaborados. 2. Um compasso quatro por quatro, fácil para bateria e violões, MAS quebrado e jingado (a famosa junggle guittar do Noel, influenciada pelos Smiths e aqui em All Over Now claramente pelo Cure). 3. A voz da Dolores que pode cantar qualquer "hino do rock" ou qualquer "besteira" e soar icônica e triste, raviosa, feliz, distante, fazendo você sentir o que ela está sentindo.
Com tudo isso, o Cranberries foi endeusado como a melhor banda de todos os tempos durante MUITO tempo: de 1990, quando surgiram, na Irlanda, até se expandirem pelo mundo em 1994 e pararem em 1996. Mas 1996 e 1997, na verdade, ainda foram de êxito: o público em geral conhecia e gostava da banda, principalmente nos Estados Unidos. O problema do Cranberries era o distanciamento e a frieza da crítica: primeiro, foram enxotados do altar pela mídia de massa em 1996 por conta das letras políticas e pelo comportamento arrogante de Dolores, que comprou brigas com todos os jornais possíveis da época e não aguentava dar nem uma entrevista na época do To The Faithful Departed. Depois, foram sendo esquecidos.
Massacrada pelas composições (em especial pelas letras), Dolores nunca mais foi vista da mesma forma. Havia uma certa desconfiança de que algumas faixas do Cranberries, por sofrerem com a simplicidade excessiva, pudem ser descartadas: até para fãs, ouvir The Concept é algo que necessita uma certa paciência e inspiração. São faixas aparentemente mais fracas.
O que às vezes soava irônico: Dolores recebeu uma medalha por mérito pelas artes por uma grande Universidade de Filosofia na Irlanda. Será que as letras não são simples, mas sim profundas e diretas?
Então, em 2019, após trinta anos de existência - o primeiro, em 1989, sem Dolores na banda, e o último, em 2019, sem... Dolores na banda! Quer coisa mais icônica que isso? - o Cranberries lança In The End. O Cranberries diz que a razão da vida da vocalista nos últimos dois anos era esse disco, ESSAS letras, essas melodias. Que tinham que gravar e lançar. Bandinha profética da p****.
O título já começa simples: in the end. No final o quê, Cranberries? Que bobagem, todo mundo sabe que ela morreu. No começo achei o título tristonho demais e quase bobo mesmo.
VAMOS ESPERAR, PENSEI.
Então, agora aconteceu. All Over Now acaba de fazer o maior gol da carreira do Cranberries, a coroação:
Está em blogs, twitter, jornais televisivos, jornais digitais, reportagens de músicas, dezenas de vídeos no youtube (procure, se desacreditar, e fique pasmo): o que ela quis dizer com hotel em Londres? Como ela sabia que estava tudo acabado após a briga no hotel de Londres? A cantora do Cranberries teve uma premonição? Ou teria colaborado (fatalmente) para um evento que já havia até imaginado? Dolores misturou-se no tempo e no espaço com sua música - a repetição MASSACRANTE da frase "você se lembra?" (do you remember), não é preguiça artística, mas uma pegadinha: 'você se lembra' é uma pergunta para quem já viu o que aconteceu. A música foi escrita um ano antes do falecimento da Dolores, em 2017. Sim, nós nos lembramos, Dolores, porque vimos sua partida em um hotel em Londres. Mas como você poderia perguntar isso para os seus fãs (já que o disco é dedicado aos fãs) ao escrever a letra se não havia nada para lembrar em 2017? Você estava escrevendo essa música, o que pensou? O que havia acontecido já em um hotel em Londres? Ou iria, mesmo, acontecer, Dolores?
Isso, esse debate em torno da letra de tamanho alcance, dá a Dolores a vitória final sobre críticos de suas letras. Dolores está fazendo mídia e público discutirem seriamente a letra e ouvir a sua música nova (isso para uma banda com 30 anos de carreira). Então (pega a vibe "False"), os jornais e críticos estão de novo louvando Dolores e as suas letras não são mais estúpidas, agora se tornaram incríveis. E com aquele sorriso esperto da Dolores e uma piscadinha, quase consigo vê-la querendo dizer: I win - daquele jeito competitivo dela que todo os fãs conhecem um pouco quando se tratava dela defender a carreira e a banda.
Musicalmente, em All Over Now a guitarra do Noel passeia por todas as fases da banda: uma vibe do solos final de Animal Instinct no início, depois muda para uma guitarra Promises / Wake Up durante a letra. E no refrão se rende no melhor estilo Free To Decide / I Don´t Need.
O baixo do Mike está muito To The Faithful Departed, gravado todo "cru e pesado".
Da bateria não preciso falar. Mestre é mestre.
E aqui está uma "pegadinha": para quem disser: a voz dela mudou, ou está muito suave, fica a pergunta: ela te fez sentir forte em Zombie, apaixonado em Linger, melancólico em When You´re Gone e com raiva em Promises (maravilhosamente, aliás). Então, ela te dá toda a doçura para dar adeus em All Over Now, e é isso. Ela sabe o que faz, deixa a garota cantar. Uma doçura que já aparecia em The Glory.

Agora eu entendi: IN THE END.
No fim,
trinta anos depois, o Cranberries ainda é o assunto do momento. Brilhante e único no som que faz.

Nota:
All Over Now foi considerada uma das melhores faixas da banda das últimas décadas pelo jornal Independent (Dublin, Irlanda).
Recebeu 4.7 e 4.6 estrelas (de 5) respectivamente pelo crítico especializado Brinsley Schwarz (Amazon.uk) e pelo The Guardian. A primeira apresentação da música foi feita em espaço aberto, em Limerick, reunindo centenas de fãs de Dolores e dos Cranberries entre 8 e 76 anos. Sobre a sua sepultura estão flores, homenagens, cartas, poemas, fotos, coroas e três guitarras - "muito amável e respeitoso", segundo a mãe de Dolores, Eileen.

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