sábado, 14 de abril de 2018

De Fã Para Fãs.

O Tempo Provou Que Nos Apaixonamos Pela Banda Certa
Por César Serrazes

Muitos anos atrás eu escrevia muito mais sobre Cranberries, a banda que conheci aos quatorze anos e que influenciou minha adolescência e maturidade. Fosse me apresentando a outras bandas, movimentos, artistas, ou me introduzindo ao seu próprio universo – puro sangue irlandês, de melodias incríveis e simples (mas nunca simplistas), com uma voz de ouro, valentia, delicadeza. Conforme eles desapareciam aos olhos do grande público – em meados de 1996 para 1997 – minha obsessão aumentava: era quase como gostar de uma banda Cult. Entre 1998, lançamento do quarto álbum da banda, Bury The Hatchet, e 2001 era possível ouvir pessoas me perguntarem: é a tal banda de “Zombie”? Isso porque, nestes anos, “Zombie” estava saturada: havia tocado tanto que as pessoas que não eram fãs não pensavam: “que música boa!”, mas sim “nossa, essa de novo”.
O tempo tem dessas coisas. Na segunda metade de vida do Cranberries, a partir de 1998, os ouvintes não associavam mais a banda à “Linger”, e a delicadeza do Cranberries já havia mesmo ficado um pouco para trás, obscurecida por singles como Salvation e Promises.
Assim, a partir do Wake Up And Smell The Coffee, eu praticamente amava uma banda esquecida. E fui conhecendo a teia sem fim dos que já eram super fãs – aqueles que amavam a banda desde o primeiro álbum – até os fãs que tinham descoberto a banda há menos tempo e seguiam com ela desde então. Havia poucos fãs novos – sumidos do grande público, o Cranberries só foi começar a ganhar algum terreno novamente nos anos 2000, com a popularização do DVD Beneath The Skin nas lojas. Mas isso, também, com suas perdas e ganhos: não eram os fãs da Dolores tímida, de Linger, ou da Dolores loira, de Zombie. Eram fãs daquela banda que tocava no DVD como se o show em Paris fosse um reflexo inteiro da banda – e não era. Era apenas mais um reflexo de uma fase do grupo.
Cortando uma grande parte da história, que diz respeito à carreira solo de Dolores, chegamos diretamente ao Cranberries de Roses (2011). Um Cranberries que já havia excursionado por quase todo mundo e conseguido, com muito êxito, reavivar Zombie entre aqueles que antes não aguentavam mais a música. A partir daí, voltava à ativa com todo o caráter e pompa de uma banda experiente, dona de vinte anos de estrada, com sucessos no setlist de fazer corar qualquer banda. QUALQUER artista pop.
Toda vez era a mesma coisa, eu percebi: quando o Cranberries voltava a ser notícia na imprensa ou ganhava alguma notoriedade entre o grande público, eu escrevia menos sobre a banda. Porque não eram mais “somente meus”, mas eram também do resto do mundo. De gente que gostava de Rihanna, mas também ouvia Cranberries. Era estranho. Nem dava para começar a explicar, para os outros, o que era realmente Cranberries. Então eu nem tentava.
Os shows lotados do Cranberries no Brasil foram um exemplo. O twitter bombava, todo mundo falava da Dolores como se ela fosse uma popstar conhecidíssima, e uma ‘twittada’ me fez cair a ficha: uma garota perguntando “onde foi que o Cranberries achou tanto fã de repente?”.
Era verdade. Eu, que acompanhava a banda desde 1994, senti o mesmo. O Credicard Hall lotado sabia Analyse! Mas como assim, produção?
Hoje eu entendo. Ah, o tempo. A partir de 2010 o Cranberries caminhou, por uma estrada longa e em velocidade lenta, para se tornar a maior banda dos anos 90. A discografia estava lá, dava conta do recado. Eles continuavam se apresentando impecavelmente ao vivo. A imprensa não os perseguia mais. Eram outros jornalistas, mais novos, alguns até fãs, e que desconheciam completamente os atritos da banda com a mídia. Mas nenhum que a detestava ou tinha uma birra profunda como na época de To The Faithful Departed. Roses foi, para a maior parte da crítica pública e da crítica especializada, um bom álbum, com bons momentos e poucos escorregões. Era o som do Cranberries, intacto. Nem mesmo as letras – o grande calcanhar de Aquiles da Dolores – eram criticadas negativamente mais. Tornava-se uma banda icônica, ponto. Não popular, mas merecedora, finalmente, de respeito, como um silêncio que se dá para alguém, em primeiro lugar, por sua experiência e idade, e em segundo lugar por sua atitude. O Cranberries nunca foi uma banda de fofocas, discussão entre integrantes, polêmicas. O Cranberries “icônico” era polido e educado. Dolores não ia mais para as entrevistas armada de faca e garfo para fazer picadinho de jornalista como em 1996. Noel ganhava espaço e voz na mesma proporção que sua barba se avolumava num tom sério.
“Something Else” foi a concretização desse movimento que tornou a banda em “lendária”: um bom álbum, com duas ou três boas releituras, mas fraco em diversos momentos. “Free to Decide” sem muita vida, mas “Linger” perfeitamente bem regravada. Uma grande canção nova – “The Glory” -, uma outra canção para matar os fãs de saudades – “Why” – e uma versão de “Animal Instinct” desnecessária, que faz muito feio perto da original. Nem mesmo esses evidentes deslizes foram sequer comentados – para todo o mundo das redes sociais e sites especializados, Cranberries estava lançando um álbum. Ponto. Era digno e icônico.
Então, Dolores morreu. Não estou perfeitamente crente disto ainda. Estou consciente, mas não caiu a ficha e isso tem uma razão: ela começou a renascer em 15 de janeiro. Todas as suas sementes estão brotando. Com vídeos raros, músicas a serem lançadas, um movimento mundial que apenas grandes, mas realmente grandes artistas recebem. Para todos que conheceram a banda – o fã do primeiro álbum, do segundo, até o desavisado que gostava apenas de Linger – foi como perder uma conhecida. Porque Dolores transpirava humanidade e sinceridade, como bem disse Noel. É impossível imaginar, em qualquer apresentação, que ela está fingindo. Ela é uma voz que não finge, que está ali. Sua partida foi como perder alguém próximo, de quem nos aproximamos durante os poucos minutos de uma música, mas que conseguiu nos tocar profundamente.
Com a resposta dos fãs de todos os países do mundo, com a resposta dos artistas do mundo inteiro, a morte de Dolores começa a parecer como algo que, embora surpreendente e terrível, sela o desejo da cantora: estar cravada na história da música. É o que toda a crítica está dizendo: bem, chega de ignorá-los. Chega de temer dizer que Zombie é incrível, porque este é o momento em que todos devem se render e prestar a homenagem honrosa que Dolores e os Cranberries mereciam ter recebido em vida. A homenagem que todos acreditavam que eles receberiam quando lançassem um grande álbum novamente. Não acontecerá. E isso nos obriga a revê-los através de sua discografia: puta que o pariu. Que discografia. Cranberries foi uma das melhores, uma das mais belas bandas surgidas a ganhar o rádio. Não é uma questão de serem virtuosos como um Led Zepellin, ou populares como o U2. O Cranberries está sendo imortalizado por ser original e não uma cópia de qualquer outro som.
            Então, eu que não escrevia há tempos sobre eles, decidi render-me também. Estava em silêncio desde a morte de Dolores porque todo mundo falava demais: jornais, sites, facebook, todo mundo parecia conhecer ou querer conhecer a Dolores. E eu que sentia humildemente que a conhecia um pouco mais, fiquei em silêncio como quando morre um parente. Não queria saber a causa da morte, os detalhes. Eu havia perdido uma irmãzinha doida, que cantava como uma flauta, que era divertida, engraçada, tímida, carinhosa, que se mostrava atenciosa longe das câmeras. Bem longe de qualquer oportunidade de ganhar público ou mídia. Exatamente como no palco. Que tinha problemas, que procurava se reinventar, que não se vendia jamais. Que era impulsiva, que ria de si mesma. Que foi uma garota mandona e uma mulher pensativa, de olhar distante nos shows, após a perda do pai, depois com o fim do casamento, depois tentando de reerguer de tantos traumas.
Eu, que insistia em colocar Linger pra tocar toda vez em que me apaixonava e dava o primeiro beijo – porque era para isso que Linger servia.
Eu, que me reencontrava mais forte ouvindo Animal Instinct, porque era pra isso que ela servia.
Eu, que demorei muito para entender a alegria besta e quase ingênua de cantar e dançar Analyse como se só houvesse o momento presente.
Eu, que esperava sempre o regresso da Dolores como uma fênix. Assim como todos que buscam se encontrar.
Obrigado por sua música.
Obrigado por estar presente, de verdade, e nunca atuando. Que quando estava cansada, mostrava-se cansada – no palco, nas entrevistas. Tenho a certeza de que os shows cancelados, para chegarem a esse ponto, devem ter doído mais em você do que em nós, fãs, que ficávamos “nervosos” com seus sumiços.
Voa, borboleta. Você agora é imortal. 



2 comentários:

  1. ... SEM PALAVRAS!! Texto sensível e verdadeiro como um crisântemo e uma espada. Parabéns por expressar as palavras de milhões de pessoas no mundo todo.

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